Dias atrás, em seu perfil no Facebook, o psicanalista gaúcho Edson Luiz André de Sousa fez um post intitulado “Sobre o que nasce, apesar de tudo”. No texto, que incluía um fragmento do poema É sobre de repente abrir alguma coisa, de Lorenzo Ganzo Galarça, o professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) refletiu sobre “a sinfonia imensa dos gestos solidários, das palavras de afeto, das imagens de esperança” produzidas aos milhares dentro das casas durante a quarentena imposta pelo coronavírus.
Contou, então, sobre uma atitude mínima mas comovente de sua filha, Alice Tessler, que lhe presenteou com alguns grãos de feijão em um algodão, “cena tão familiar para muitos de nós, nos reconectando com a infância mais autêntica”.
No espaço sobre a foto do tal vasinho, o pelotense de 60 anos, radicado desde os 11 em Porto Alegre, escreveu: “Não é suficiente, mas são destes gestos que precisamos nos alimentar. Fico sonhando com tantas germinações acontecendo por aí. (…) Está na hora de renovar as sementes. Precisamos plantar o que gera vida, enquanto é tempo”.
— Somos obrigados a encontrar estratégias de sobrevivência diante deste cenário de morte. A pandemia acionou nosso espírito de criatividade. Espero que isso nos enriqueça no futuro — diz Sousa, que, nesta entrevista, fala sobre a importância do fortalecimento dos laços afetivos e das redes de apoio (que geram um sentimento de pertencimento ao mundo) e sobre o poder da arte, capaz de “nos despertar, uma forma de ativar nossa consciência diante da realidade que vivemos e da realidade que desejaríamos viver”.
O que é viver nos tempos de coronavírus?
É um desafio para cada um de nós, pois fomos abruptamente confrontados com uma sensação generalizada de desamparo. Para muitas pessoas, trata-se de algo poucas vezes experienciado na vida. Ao mesmo tempo, somos obrigados a encontrar estratégias de sobrevivência diante deste cenário de morte. A ideia de contaminação se impôs e, paradoxalmente, vivemos a ambiguidade de nos distanciar fisicamente de nossos parentes, vizinhos, amigos, mas também de estreitar laços afetivos, compensando em parte esse distanciamento. A angústia também se fez presente, na medida em que o coronavírus desafia o saber humano e a ciência, já que ainda não temos respostas para o tratamento e vacina. Foi possível identificar imediatamente reações díspares que vão desde uma negação completa até situações de pânico. O fato de ser um acontecimento mundial também tem sua relevância, pois embora cada país esteja vivendo a pandemia de uma forma singular, há uma vivência compartilhada no mundo todo. Se por um lado vemos algumas atitudes colaborativas, por outro nos assustamos com uma espécie de guerra sanitária que surge, com aviões sendo retidos em alguns países com máscaras e equipamentos hospitalares, enfim, um verdadeiro horror. No Brasil, particularmente, a situação do vírus colocou também em pauta nossa situação política, sobretudo pela negligência com que o presidente vem lidando com esta situação. Está muito presente para todos aquela cena em que, desrespeitando a quarentena, saiu apertando a mão de seus simpatizantes. De alguma forma, o vírus trouxe à cena a necessidade de lermos a história de nosso tempo. No que diz respeito à vida privada, a pandemia nos exigiu criar novos estilos de vida e estratégias de sobrevivência. Enfim, acionou nosso espírito de criatividade.
Estamos testemunhando várias situações de familiares distantes se aproximando, de amigos voltando a falar, de pais e mães convivendo mais com os seus filhos, de muitas pessoas tendo que fazer atividades que antes delegavam, como cuidar da casa, fazer comida. Quem sabe esse sentimento não despertará em nós outros valores, outras prioridades, outro estilo de viver?”
Os sentimentos bonitos que afloraram, como empatia e solidariedade, vão permanecer? Estamos diante de uma revolução comportamental?
Meu desejo é de que permanecessem, mas tenho minhas dúvidas. Esta empatia e esta solidariedade, tão presentes em muitas pessoas, estão longe de ser unânime. Vemos redes de apoio aos mais vulneráveis se multiplicando, mas, ao mesmo tempo, pessoas virando as costas para o mundo, se preocupando única e exclusivamente com sua sobrevivência e suas estratégias de isolamento. Isso é algo que vem sendo bastante debatido: o fortalecimento das redes de apoio, que já existiam mas que agora precisam ainda mais estarem em pauta. De toda forma, me parece impossível que a vida seja retomada normalmente como era antes. Li recentemente em um poema de Alberto Pucheu, poeta e professor na UFRJ, intitulado “Poema para a catástrofe do nosso tempo”, a referência de um grafite em Hong Kong onde estava escrito: “Não podemos voltar ao normal, porque o normal era exatamente o problema”. Este vírus colocou em cena muitas das fragilidades de nosso pacto social e, entre eles, o mais escancarado de todos que é a desigualdade social. Uma hipótese a levar em conta é de que, depois que tudo passar, seremos todos de certa forma sobreviventes. Quem sabe esse sentimento não despertará em nós outros valores, outras prioridades, outro estilo de viver? Estamos testemunhando várias situações de familiares distantes se aproximando, de amigos voltando a falar, de pais e mães convivendo mais com os seus filhos, de muitas pessoas tendo que fazer atividades que antes delegavam, como cuidar da casa, fazer comida. Espero que isso nos enriqueça no futuro.
Para alguns, a quarentena é uma privação de prazeres e da rotina, uma dor de cabeça mais longa. Para outros, pesa mais: pode já ter significado o desemprego e a falta de dinheiro para alimentar a família. Para além do auxílio econômico, como se pode contribuir para a saúde mental dessas pessoas?
Tens razão em apontar esta diferença brutal no que diz respeito à desigualdade social. Inclusive, é paradoxal percebermos o quanto a indicação “fique em casa” escancara o fato de que milhares de pessoas não têm casa ou vivem em habitações precárias. As orientações de higiene também evidenciam isso, pois uma numerosa população não têm acesso a saneamento básico e água tratada. A esperança é de que esta pandemia, mais uma vez, funcione como um alerta ao mundo de que não poderemos seguir vivendo diante de tal desigualdade social. No que diz respeito à saúde mental, eu sublinharia dois fatores importantes: o papel dos laços afetivos tanto com as pessoas mais próximas, familiares, amigos, como eventualmente com pessoas mais distantes em gestos solidários. Tais atitudes geram no sujeito um sentimento de pertencimento ao mundo, de valor, e isso é fundamental para a sua saúde psíquica. Um segundo fator, que considero importante, é a esperança. Poder imaginar um mundo melhor depois de tudo isso traz um pouco de apaziguamento à angustia. Imaginar um futuro aciona o que temos de mais precioso para nossa saúde psíquica: desejar.
Ser criativo não significa necessariamente criar obras de arte. Podemos ser criativos reinventando nosso cotidiano, buscando desenvolver outros olhares sobre o mundo. Mudar um hábito, algo ao mesmo tempo simples e complexo, não deixa de ser uma proposição criativa. Resgatar uma habilidade adormecida, imaginar uma receita diferente, anotar os sonhos que teve à noite…”
Percebi, nos seus posts no Facebook, que o senhor lança mão de filmes (como o iraniano Onde Fica a Casa do Amigo?), de poemas, de pinturas para refletir sobre o que estamos vivendo. Qual é o papel da arte neste momento?
O papel da arte é fundamental. A arte sempre foi um meio de ver e ler o mundo de forma crítica, acionando assim nossa responsabilidade diante do que vivemos. Não penso a arte como algo contemplativo e que levaria o sujeito a um anestesiamento. Pelo contrário, penso a arte como uma forma de despertar, como uma forma de ativar nossa consciência diante da realidade que vivemos e da realidade que desejaríamos viver. Outro fator relevante é que muito da produção criativa traz junto narrativas da história e de como podemos aprender com as experiências que a humanidade já viveu. Não necessariamente encontramos as respostas na arte, mas certamente ativamos, com muito mais ênfase, as perguntas, as boas perguntas. A arte sempre nos abre um direito de sonhar e, portanto, de certa forma uma utopia. Como dizia Ezra Pound (poeta americano, 1885-1972), “os artistas são a antena do seu tempo”.
Em tempos de aperto no orçamento doméstico, a cultura tende a ser enquadrada como supérflua. É possível viver longe dela? Quais são os prejuízos?
A cultura é essencial, pois ela funciona como uma espécie de espelho de uma determinada época. Uma sociedade sem cultura é vazia e pobre de espírito e tende muito mais facilmente a seguir cegamente qualquer ideia, qualquer líder, sem muito questionamento. Não podemos esquecer que a cultura, além de nos conectar com a história de uma determinada sociedade, também nos abre novos futuros, pois aciona nos sujeitos a consciência de que são eles que fazem esta história. Uma sociedade que não dá valor a cultura abre espaço para a barbárie!
É possível ser criativo em meio à ansiedade, ao estresse, ao medo?
Sim. Em primeiro lugar, é importante salientar que ser criativo não significa necessariamente criar obras de arte. Podemos ser criativos reinventando nosso cotidiano, buscando desenvolver outros olhares sobre o mundo. Mudar um hábito, algo ao mesmo tempo simples e complexo, não deixa de ser uma proposição criativa. Resgatar uma habilidade adormecida, imaginar uma receita diferente, anotar os sonhos que teve à noite, e tantas outras coisas que podemos descobrir bem perto de nós, ativa também nosso poder de criação. Até diria que nestas situações a força criativa surge como estratégia de sobrevivência, e por vezes, com mais força. Temos vários relatos de obras criadas em situações extremas. Primo Levi produziu toda uma literatura a partir de sua experiência em campos de concentração (Náufragos e Sobreviventes, É Isto um Homem?). Dostoievski escreveu Memórias do Subsolo diante do leito de morte de sua mulher em uma situação desesperadora de crise financeira. Graciliano Ramos iniciou a escrita de Memórias do Cárcere na prisão. Nessas horas de desamparo e medo, a criação surge como oxigênio abrindo para o sujeito alguma saída. Mesmo em situações em que uma saída não se anuncia para o autor, criar algo tem a força de servir como testemunho. O artista deixa seu registro para a história, cumprindo assim a importante função de testemunhar. No ano passado, eu vi na Biblioteca Nacional, em Paris, uma exposição intitulada Manuscritos no Extremo. Ela mostrava justamente algumas criações geradas em situações extremas de violência, desamparo. Ao mesmo tempo que essas produções são hoje documentos históricos de catástrofes vividas, são sobretudo monumentos à vida. Nestas horas, lembro sempre de Holderlin (filósofo alemão, 1770-1843): “Lá onde está o perigo, cresce também o que salva”.
Dá para imaginar o que artistas, escritores etc estão criando?
Difícil saber, mas certamente estão trabalhando. Vejo várias iniciativas de artistas que estão surgindo. Produções colaborativas, propostas de exercícios de escritas diárias, novas parcerias de trabalho. Certamente, uma parte da história do que estamos vivendo será contada por esta produção que se prepara em silêncio nos bastidores, exatamente como este vírus que circula sem sabermos exatamente por onde circula. Já ando lendo alguns textos, alguns poemas. Entre eles, me impressionou muito o trabalho do poeta Alberto Pucheu, do Rio de Janeiro, e sua série ” Poema para a catástrofe do nosso tempo”. Por aqui, um amigo artista, Leandro Selister, criou um grupo no Facebook, Nosso olhar, convidando as pessoas a compartilharem uma foto de sua janela durante a quarentena. Estamos vendo a construção de uma grande poesia visual!
“A vida não é só trabalho. Precisamos acionar outra ocupações do nosso tempo. A imagem da morte ronda nossos pensamentos. É fundamental criarmos e ampliarmos nossos espaços de vida. Eles não são uma vacina contra o vírus, mas nos faz mais fortes psiquicamente para enfrentá-lo.”
Que outras atitudes positivas podemos ter frente à pandemia?
Acho que esta pandemia abre a chance para cada um de nós rever seus valores, seu estilo de vida, sua forma de habitar o tempo. Muitos estão tendo a surpresa de se reencontrar com amizades esquecidas, com livros guardados na estante. Como nunca, é tempo também de pensar no outro e, neste sentido, acho que colocar em ação movimentos solidários. Isso se faz ainda mais urgente quando o Estado não cumpre a função que deveria cumprir, em vir em auxílio das populações mais vulneráveis. Acho que esta pandemia nos ensina também o papel da informação e que é nossa responsabilidade buscá-la de forma crítica. A onda de fake news que o mundo vive há alguns anos é outro vírus que temos de enfrentar. Dar valor ao tempo que temos e nem sempre percebemos. A vida não é só trabalho. Precisamos acionar outra ocupações do nosso tempo. Abri tempo e espaço para leituras que estava a horas para fazer, uma delas é reler Ernst Bloch e sua trilogia Princípio Esperança. Há muito anos trabalho com o tema das utopias e acho que, neste cenário de distopias que vivemos, precisamos ativar nossas esperanças autênticas. O cenário que temos é preocupante, e a imagem da morte ronda nossos pensamentos. É fundamental criarmos e ampliarmos nossos espaços de vida. Eles não são uma vacina contra o vírus, mas nos fazem mais fortes psiquicamente para enfrentá-lo. Nestas horas, uma palavra pode fazer toda a diferença.
(Fonte: gauchazh)
(Imagem: Engin Akyurt)
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