O ano de 1968 tornou-se um marco para a definição de uma nova era no campo dos costumes. Depois daquele maio a revolução sexual, a horizontalização da autoridade, a docilização do poder e a feminilização da cultura, que antes ocupavam um lugar periférico, tornam-se gradualmente a nossa nova forma de vida. Mas esta nova norma do desejo continha uma tese que foi sendo gradualmente esquecida ou integrada, ou seja, de que a loucura teria de ser escutada, porque ela tinha algo a dizer. Naquele momento a loucura era uma espécie de estilo de vida, meio beat-nick, meio rock; meio alternativo, meio marginal. A loucura tinha uma face antropológica com um pé na Índia e outro nos habitantes de outros planetas. Feita de estados alterados de consciência, ela falava poeticamente, na voz dos excluídos, dos malditos e dos apocalípticos.
Em menos de 50 anos a loucura tornou-se novamente a psicose, a depressão, o pânico e as drogadições. Ela normalizou-se a tal ponto que uma vida sem loucura, no trabalho ou na política, no trânsito ou no amor, tornou-se uma vida sem sal. Com isso nossa cobiça pela adequação começou a crescer. Destituída de sua utopia e de sua potência transformativa, a loucura foi reduzida a loucura alheia a uma diferença intolerável no modo de pensar. Lacan se perguntava por que um neurótico obsessivo não consegue ter nenhuma intuição de sua própria loucura quando encontrava outro neurótico obsessivo. Talvez isso exprima uma lei mais geral de que faz parte da loucura que ela não consiga se reconhecer fora de si mesma. Nossa paixão mais inútil pela identidade exclui do cálculo cotidiano que a loucura existe. Tornamo-nos tão obcecados pela lei que acreditamos que todos se relacionam com ela exatamente como nós.
Em meio a este tempo de organização de minorias em torno de modalidades de sofrimento e segregação, do feminino à negritude, da diversidade cultural ao respeito pelos animais considerando a iniquidade na distribuição de bens simbólicos e materiais da diversidade étnica à diversidade, é uma pena que a loucura, tenha tão pouca expressão política entre as minorias. Isso mostra a indignidade normalopática a que se reduziu nossa situação. Não falo apenas do preconceito contra a doença mental, que permanece quase intocada em nossas pautas de reocupação do espaço público, em nosso debate ético e em nossas políticas de educação. É que parece ser próprio da loucura que ela seja antes de tudo do outro, como desqualificativo, e depois de tudo algo que não tem existência própria. O dito comum do preconceito na matéria afirma em coro: “É só falta de educação, ‘chilique’ que não rasga dinheiro. Folgados que adoram ‘se fazer de vítima’. Fraqueza moral de quem não tem fé ou força de vontade. Gente que quer chamar atenção.” Normais são apenas as limitações e obrigações “irracionais” que nós mesmos nos concedemos e nos impomos. Essa é a única loucura que tem direito a existência protegida e abrigada.
Aqueles que já atenderam pessoas com um sintoma como a cleptomania podem dizer como nossa cultura policial simplesmente descredita da existência desta forma de loucura. O mesmo para os pais de tantas anoréxicas, psicóticos e autistas. Idem para o pânico verdadeiro, para a depressão consolidada, para os delirantes alucinados, para os acumuladores, maníacos por compras ou sexo. O que dizer então das pequenas loucuras como não urinar em banheiros públicos, não falar com estranhos, não se permitir usar certas roupas. No quadro geral todas as loucuras se equivalem, mas isso não deveria nos eximir de reconhecer sua existência. Quando se trata de loucura o único universal é que somos todos exceções.
(Autor: Christian Dunker)
(Fonte: Este artigo foi publicado originalmente na edição de setembro de 2015 da revista Mente e Cérebro)
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