A psicanalista argentina Virginia Ungar é a primeira mulher à frente da Associação Internacional de Psicanálise (AIP), fundada por Freud em 1910 e cujo primeiro presidente foi Jung.
Na semana passada a organização, com sede em Londres, teve um encontro em Portugal, onde reuniu duas dezenas de membros da sua direção.
Estes encontros acontecem em diferentes zonas do globo também com o objetivo de promover o contato com as sociedades locais, explica a psicanalista que trabalha com crianças e jovens e que já deu aulas no Brasil, por isso, fala português, acrescentando que a AIP tem 13 mil membros (da Europa à Oceania) e seis mil candidatos – não é fácil o processo de admissão, que pode levar anos.
Por aqui, a organização conheceu o trabalho da Sociedade Portuguesa de Psicanálise e do Núcleo Português de Psicanálise, que também fazem parte da AIP.
Virginia Ungar, que já passou dos 70 anos e orgulha-se de continuar na ativa, deu ainda uma conferência no ISPA-Instituto Universitário, em Lisboa, onde falou sobre o feminino, das diferenças entre homens e mulheres. Este é o tema do próximo congresso internacional, a acontecer em Londres, no próximo mês de Julho, uma “escolha da presidência”, adianta.
É a primeira mulher presidente da AIP. Que diferenças existem quando se é a primeira mulher à frente desta organização?
É diferente ser uma mulher, mas não sei quanto. Se for diferente [a gestão], di-lo-ei quando terminar (riso). O mundo mudou e isso também mudou.
E é diferente a forma como uma analista mulher ou um homem lidam com um doente?
É impossível dizer porque não consigo ver através dos olhos de um homem, embora o meu marido também seja psicanalista. Algumas pessoas pensam que as mulheres, – não gosto de dizer que sejam “melhores” –, mas que estão mais ligadas às crianças. Mas não sei dizer. Talvez em algumas idades, por exemplo na puberdade feminina, seja melhor ter uma [profissional] mulher. Mas não sei.
O objetivo da psicanalise é o bem-estar do doente?
No meu entender, a psicanálise tem de ser terapêutica. Pode ajudar quando alguém não se sente bem ou sofre de ansiedade. Da mesma maneira que ajuda crianças com problemas de desenvolvimento e até bebês.
Como é que se comunica com um bebê?
É mais importante observar. Claro que comunico com os pais. Eu trabalho com bebês e mães, não podemos separá-los. A queixa mais frequente é que as crianças não falam e isso pode ser um sinal de autismo ou de um problema de desenvolvimento. Quando começamos um tratamento não sabemos quando termina. É um investimento em tempo e em dinheiro, mas estou convencida que a psicanálise é a melhor psicoterapia que podemos oferecer.
Contudo existem cada vez mais ofertas, umas reconhecidas pela ciência e outras não. Como é que olha, por exemplo, para o mindfulness?
Atualmente é muito popular. Respeito muito as escolhas que as pessoas fazem. Mas eu defendo a psicanálise porque esta pode fazer mudanças na vida das pessoas.
A psicanálise é mais científica?
Não posso dizer isso. É diferente. Podemos discutir se é uma ciência ou uma arte porque esse continua a ser um debate atual. Para mim é uma ciência e o mais importante é que através da psicanálise procuramos mudanças grandes e importantes [na vida das pessoas que a fazem]. Não podemos ter uma grande mudança quando fazemos uma terapia de curta duração. Não é possível. Precisa de tempo porque o doente tem de lidar com as suas próprias resistências.
Mas quando era mais nova ficava mesmo zangada quando as pessoas escolhiam outras terapias. Hoje é uma escolha que respeito. No entanto, nunca as recomendaria porque não as conheço. Eu dediquei a minha vida à prática da psicanálise.
Na mensagem de ano novo que enviou aos associados diz que este é um ano de desafios porque vivemos tempos difíceis. Que desafios são esses?
O desafio, o sinto no meu país, mas também noutros que visito, é o stress e este tem várias justificações. O mundo caminha numa direção de incerteza e isso afeta a mente das pessoas que sentem a incerteza em relação ao seu futuro.
Os psicanalistas terão mais trabalho?
Quando lemos os jornais, percebemos que desafios nos colocam. Por exemplo, o tema do feminino: não é o mesmo ser uma mulher na Índia, no Japão, no Equador, nos EUA… Gosto de Lisboa pois sinto que aqui se pode viver sem grande stress.
Mas ele existe!
Claro que sim, mas não existe violência. Quando era pequena, os meus pais ensinaram-me a andar de transportes públicos aos 10 anos. Hoje, em Buenos Aires, os adolescentes aprendem aos 16. Sentem que não há segurança. Há outras partes do mundo onde se sente o mesmo. E esse é um desafio.
Li que os refugiados também a preocupam. Porquê?
A minha preocupação é: o que acontece com as famílias que são separadas, as crianças que são postas em barcos e chegam sem as suas famílias a um país onde não conhecem a língua? Há já programas que procuram ajudar estas pessoas, em que os psicanalistas estão envolvidos. Temos conhecimento sobre o desenvolvimento infantil, sobre a importância de um ambiente que pode ajudar as crianças a desenvolver-se melhor e é preciso intervir, caso contrário, os problemas que o mundo enfrenta serão maiores.
Em Portugal, segundo os dados da última análise, no âmbito do estudo Health Behaviour in School Aged Children, da OMS, os jovens não gostam da escola (30%), estão tristes e cansados (20%), têm problemas de sono (12,7%).
Não gostam da escola? Eu concordo com eles – não conheço os programas portugueses, mas se os currículos forem muito exigentes é natural que não gostem. A exigência não é só da escola, que também sente a pressão dos bons resultados. E o que significam “bons resultados”? Significa que a expectativa é que estas crianças vão para boas universidades, onde é difícil entrar, para terem uma vida bem-sucedida. Mas o que é que isto significa, que um dia serão CEO de uma grande empresa?
Sim, não é o sonho de muitos pais?
Portanto, as crianças têm razão [para não gostarem da escola], mas não é apenas a escola, esta sofre a pressão da cultura e nós, os psicanalistas, temos de lidar com estas crianças tristes com um horário cheio, sem tempo para não fazer nada. Eles precisam de tempo para não fazer nada. Isso é algo que temos de estudar. É um problema mundial.
Eu fui para o pré-escolar quando tinha quatro anos e fui feliz. Agora, as “melhores escolas” estão a receber crianças com oito meses de idade, crianças de fralda, chucha, que ainda não falam, para os pais garantirem a vaga nessa “boa escola”.
Mas haverá outros fatores para serem infelizes e não gostarem da escola, como o uso intensivo das redes sociais?
Os pais dão celulares aos dez anos, alguns recebem mais cedo, e isso é um problema real. Mas ao mesmo tempo esse é um bom meio de estarmos ligados. Portanto, depende sempre das circunstâncias. Uma criança que joga, manda mensagens, ouve música, mas também sai e vai jogar futebol, é diferente de uma que passa o dia todo à frente do computador. É fácil cair na tentação de pensar que [o uso das novas tecnologias] é apocalíptico. E também é fácil ser seduzido pelo seu uso.
O que devem fazer os pais?
Os pais são os responsáveis pelo uso. Há anos, tirei uma fotografia de uma família de cinco, pais e filhos, e todos estavam à frente de uma tela, um celular, um IPad… Todos. Cada um tinha o seu dispositivo e ninguém falava entre si.
Quais são as consequências desses comportamentos?
Isolamento… Sempre tivemos crianças que se isolavam, mas agora é mais atrativo para alguns estarem com uma tela. No entanto, também dá-lhes a oportunidade de, online, serem quem quiserem.
Quando olhamos para as suas contas de Instagram, eles parecem felizes, fazem férias, compras, têm amigos. Mas depois respondem, no inquérito, que estão tristes. Porquê?
Temos de perceber que o espaço onde comunicam, onde fazem trocas entre eles é na Internet. Costumava ser o recreio, o clube, o parque, a igreja, mas agora é a Internet. Esta quebrou os muros.
Mas estão, de fato, vivendo?
Esse é o problema. Ontem dei uma palestra na universidade e perguntaram-me sobre a realidade externa e interna. Claro que nós, os psicanalistas, trabalhamos com a realidade interna – mas o que é que esta significa? Esta também é uma pergunta para a filosofia, à qual não é fácil responder. Penso que vivemos em diferentes realidades, uma delas é a virtual. Claro que há doentes com problemas de adição – mas o problema não está na substância que tomamos, no álcool que bebemos, nos bolos que comemos ou no celular que usamos. O problema está na personalidade de cada um.
Os jovens estão menos interessados em ter contato físico, evitam ter relações. Isso pode ser associado ao uso intensivo da Internet?
Acho que é tudo uma questão cultural. Não tem nada a ver com a Internet. Se compararmos um brasileiro com um português, são muito diferentes e já o eram antes da Internet. A sexualidade não é a mesma do tempo em que Freud criou a psicanálise. A sexualidade na adolescência é mais libertadora – antigamente era preciso casar antes de ter relações sexuais, hoje não é assim. A virgindade era uma virtude, mas hoje é um problema real para uma adolescente que ainda é virgem porque pode sofrer de bullying por parte dos seus pares. O mundo mudou muito e temos de observar [essas mudanças].
Existem também o cyberbullying e é fácil destilar ódio online, onde escrevemos sem filtros. Concorda?
Escrevemos sem filtros, o que não é uma boa prática. As redes sociais são uma boa forma de nos ligarmos, de iniciar relações, de conhecer pessoas de todo o mundo, mas também é um veículo para o bullying, para o assédio, para fazer os mais novos sentirem-se muito mal. Essa é uma questão que me preocupa.
As redes sociais podem mudar uma pessoa?
Sim. No nosso último congresso internacional, em Buenos Aires [2017], o tema foi a intimidade, qual é o seu papel na nossa vida, nos nossos consultórios. Para alguns dos meus doentes, a única oportunidade que têm de ter intimidade, e não estou falando de sexo, é na hora da psicanálise. É um tempo muito precioso.
Porque a maior parte do tempo estamos “fora de nós”?
Sim, fora de nós e a psicanálise é a arte ou a ciência de tentar religarmo-nos com o nosso eu. E o analista só ajuda a fazê-lo.
É algo que conseguimos fazer sem ajuda. Individualmente?
Algumas pessoas conseguem, mas a maioria não.
Por que não queremos nos conhecer melhor?
Isso é o que Freud chamava resistência. Para algumas pessoas é melhor não se conhecer a si mesmo.
(Autor(a): Bárbara Wong)
(Fonte: publico.pt)