Alguns de nós nascem de uma desnecessária ironia do destino, e eu estou incluída nesta lista. Não me entendam mal, sou muito grata por estar viva. Mas assim como um dia paramos para nos fazer perguntas difíceis tipo “Para onde vamos?“, há também os dias em que nos olhamos no espelho e vem o questionamento “De onde viemos?“. E quando nossas origens são complicadas, atormentadas e tristes, geralmente evitamos pensar no assunto. Passei boa parte da minha vida tentando entender, até o dia em que tomei a decisão de deletar essa busca por entendimento e aceitar o fato de que eu não tinha poder para mudar nada.
Hoje é Dia dos Pais, um dia que nunca fez o menor sentido para mim. Comemorar ser órfã de pai vivo é meio macabro, não? Enquanto escrevo este post estou no quarto do hospital cuidando da minha mãe – foram 2 meses internada na UTI e agora começa uma recuperação que, segundo os médicos, fará com que daqui uns seis meses ela seja capaz de caminhar de novo. É difícil controlar certos sentimentos, como, por exemplo, a raiva. Em horas assim, quem é OPV (órfão de pai vivo) sente uma raiva descomunal. Por não ter para onde correr. Por não ter para quem pedir socorro. Por não ter para quem pedir ajuda na parte prática da vida. Foram infinitas as vezes em que me senti como se estivesse sozinha numa arena apanhando de uma mão invisível. Hoje, me sinto assim de novo – talvez por isso tenha dado vontade de exorcizar essa sensação medonha escrevendo.
Filhos deveriam ser feitos única e exclusivamente quando duas pessoas que se amam estão dispostas a isso. Não quando dois jovens ou adultos cometem a cagada de engravidar sem intenção. No meu caso, foram dois jovens, jovens demais. E o segundo golpe veio com a morte daquele que teria exercido o papel de meu pai com maestria quando eu tinha apenas 1 ano de vida, meu avô Chico. A partir daí fui criada pela minha mãe (que também é um mix de irmã mais nova e filha) e pelo meu ‘pai’, minha vó Tereca. As duas me deram todo o amor e conforto que conseguiram, mas criança sempre sente algumas faltas meio doídas.
Nem lembro direito, acho que a presença do meu pai biológico durou até os meus 6 ou 7 anos. A verdade é que não tenho nenhuma lembrança boa, só lembranças ruins. De agressões verbais, de beberragem, de mentiras, de sumiços, de nãos. Vou aos cafundós da memória e não encontro um episódio que tenha sido 100% bonito ou verdadeiro. Lembro apenas de uns dois episódios automaticamente anulados pelas mentiras posteriores. Que coisa.
Na minha época de criança, ser filho de pais separados era quase um crime. Lembro de uma vizinha que dizia que eu e meu irmão não éramos boa gente por causa disso. Lembro das mentiras deslavadas que eu inventava para os colegas para justificar aquele ‘pai’ que nunca aparecia em nenhuma apresentação do colégio, em nenhuma data importante. “Ele é militar e está na Amazônia“, “Ele é piloto e está em missão nos Estados Unidos“, e por aí vai. Afinal, era um serzinho incapaz de dizer: “Ele não veio porque não quis!” A gente se protegia como dava.
Não houve uma presença masculina na minha existência naqueles anos fundamentais em que construímos nossa personalidade e caráter. Não houve um cara que me dissesse todos os dias que eu era linda e inteligente. Não houve um cara que dissesse que quebraria os dentes dos namoradinhos que se bobeassem comigo. Não houve um cara para me dizer que tudo ficaria bem. Não houve um cara para me ensinar a dirigir ou para me ajudar a descobrir o que eu queria fazer quando crescesse. Não houve um cara que me ajudasse a lidar com a minha surdez progressiva. Não houve um cara para o qual eu pudesse ligar na hora do pepino. O cara que deveria ter sido minha referência de homem não existiu; para mim, nenhum homem nunca foi “o cara”.
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Aprendi a observar e a invejar as famílias de comercial de margarina dos meus amigos: uma mãe, um pai, tudo bonitinho nos conformes. Aos 10 anos, tive que lidar com o fato de que agora meu ‘pai’ era um super pai para outra garota, recém nascida. Ela tinha pai, mãe, infância, família; para ela, ele construiu uma casa enorme e deu toda a segurança, amor e presença que eu nunca tive. Não foi fácil, tão pequena, entender e aceitar tudo isso numa boa.
Tive raras interações com ela, e todas só serviram para que eu me sentisse sempre um lixo. Afinal, tinha que quebrar a cabeça para entender porque eu e meu irmão éramos tratados como cidadãos de segunda categoria. Que diabos nós havíamos feito? Lembro de uma vez em que passamos férias com nosso ‘pai’ e fomos num jantar, e lá as pessoas nos olhavam como se fôssemos ET’s dizendo coisas como ‘mas ninguém sabia que ele tinha… outros filhos‘ – não basta ser esquecido, você tem que ser lembrado como um erro que a pessoa preferiria jamais ter cometido.
Como resultado dessa brincadeira sem graça, até hoje não consigo confiar plenamente em ninguém. Até hoje sinto como se precisasse ser a pessoa mais legal do mundo para não ser descartada. Até hoje tenho pavor da ideia de ser um fardo para os outros e não sei pedir ajuda. Me sinto agredida em qualquer tipo de interação familiar feliz – isso é muito difícil, me sinto uma total outsider e quero sair correndo sempre que estou no meio de famílias felizes. Não me encaixo, não faz sentido pra mim, talvez porque muito cedo aprendi a não pertencer, a não fazer parte.
Eu não sou do tipo ‘saudosista do que não foi‘ que sonha com uma aproximação épica. Pelo contrário, acho que às vezes o melhor presente que uma pessoa pode te dar é a distância. Só fui entender esse presente já adulta, e hoje agradeço por ele. No caso de OPV, não há perdão: ninguém vai trazer minha infância de volta ou consertar meu espírito quebrado. O que acaba acontecendo com a maioria de nós é que acabamos chegando num ponto em que precisamos nos livrar do veneno que nos intoxica e deixar ele ir.
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Um dia você para de esperar um telefonema no Natal. No seu aniversário. Ou em qualquer data importante.
Um dia para de doer quando te perguntam se você é filha do fulano.
Um dia você para de fantasiar com uma pessoa que só existe na sua imaginação.
Um dia você para de procurar o rosto dele em rostos de desconhecidos pelos quais passa na rua.
Um dia você aprende a gostar dos traços que herdou de um total estranho.
Um dia você esquece a sua voz.
Um dia você entende que não há motivo para querer contato com nada que venha dessa pessoa. E não aceita nem quer nada que lhe faça relembrar desse sofrimento.
Acho que os pais são como asas. Nascemos com duas asas que devem crescer e nos permitir voar. Quando uma delas não cresce, a gente aprende a manter os pés sempre fincados no chão. A parte triste é perder muita coisa bonita da vida por causa disso.
Eu acredito que toda experiência horrorosa tem um lado bom. Isso tudo me ensinou a ser forte, a arregaçar as mangas e ir atrás das coisas. Aprendi a contar comigo mesma. Aprendi a dividir (dividi o quarto com a minha mãe até sair de casa aos 33 anos). Aprendi a me doar. Aprendi que todo mundo tem alguma batalha punk na vida. Aprendi que somos o resultado do festival de rasteiras que tomamos e isso não nos torna más pessoas. Aprendi a pensar primeiro nos outros, depois em mim. Aprendi a ser generosa e a compartilhar. Aprendi a nunca fazer quem quer que seja sofrer de modo intencional. Aprendi que a dor nos faz crescer mais do que qualquer outra coisa. E, no fim das contas, agradeço por tudo isso. Aprendi a admirar profundamente as pessoas que fazem das tripas coração para dar conta de criar aqueles que colocaram no mundo – e dar amor, educar e mostrar como esse mundo é bonito.
De vez em quando esses demônios voltam, como hoje. Mas em 99% dos dias me sinto em paz com o desfecho da minha história. Entendo com perfeição aquela frase que diz que há vazios que ninguém preenche e venho tentando preencher meus vazios com leveza, desde que me entendo por gente.
(Autora: PAULA PFEIFER)
(Fonte: sweetestpersonblog)
Excelente texto. Meu caso se encaixa um pouco pois tem a ver com órfã de mãe viva por uns dez anos. Meu pai foi tudo de bom, pena que partiu cedo. Estou usando e-mail de meu marido. Obrigada…
Muito obrigado pela suas palavras. Ensina-me como ser um bom pai, vivo e presente. Solidarizo com sua dor e Admiro toda a sua força!
Texto que tem tudo a ver comigo. Órfã de pai vivo desde meus 10 anos de idade e de mãe viva a partir de hj
Paula, somos duas. Vc conta minha história sem nem me conhecer. Que bom, ao menos teve uma boa mãe. Eu ainda procuro maternidade na minha. Espero que seja feliz. De verdade.