Afortunados seríamos se viéssemos a morrer lúcidos, de olhos abertos, esperando a morte a recebê-la, para que venha a nós atravessá-la e por nós nos atravesse; tal qual barqueiro cruzando rio à outra margem, ao tempo igual das águas a cruzarem barco e cumprirem seus destinos.
Pudéssemos nós aguardar a morte cheios de vida, para não nos desperdiçarmos na passagem. Quem sabe descobriríamos que somente à beira saberíamos quem somos, ainda que no instante último e anterior a não sermos nada mais. Talvez se a encontrássemos, distraída, antes dela nos encontrar, poderíamos sem turbulências abdicarmos do nosso existir e sem urgências, sabermos o que fazer com nossas sensações.
A morte me desenraizará, cancelando as autoridades de ser eu, imporá silêncios como véu a separar-me dos vivos, porque viver é fazer barulhos. Serei um ausente apenas por não me escutarem mais. A morte nos apontará verdades: ela fará com que passemos a nos dar conta da vida e os outros a se darem conta de nós. A morte igualmente permitirá mentiras: enfeitando-nos com dignidades na boca dos viventes a dar-nos qualidades que pouco usamos ou nunca tivemos.
Poremos em xeque nossas crenças, atualizaremos nossos medos, recobraremos os graus de parentesco com os eternos, descobriremos onde desaguam os mistérios. Aquele que diante da morte se encontra tem direitos de suceder-lhe tudo, inclusive continuar vivendo. Suspeito que a dita cuja tenha afinidades com os milagres, embora o que saiba da morte é aquilo que sei da vida: atravesso-a sem saber ao certo o que nela sou e o que ela é.
O que desejo não é saber, e sim que a felicidade seja sempre uma das últimas palavras a escrever e comunicar, de qual lado for.
(Título original: Pudéssemos)