Sou médica, me formei na Universidade de São Paulo e fiz residência em Geriatria e Gerontologia no Hospital das Clínicas da FMUSP. Quando comecei a entrar em contato com os pacientes no quarto ano da faculdade rapidamente percebi que o sofrimento humano era algo muito maior do que eu poderia tolerar assistir.
Quando via alguém morrendo totalmente imerso na dor, na falta de ar, no desamparo total (e num hospital público, isso acontece quase sempre) eu perguntava para meus professores o que tinha para fazer por aqueles doentes e todos diziam: nada. Isso não descia. Ficava engasgado no meu peito, doía de doer fisicamente, sabe? Eu chorava. Não me conformava que os médicos pudessem não se importar com tamanha incompetência da medicina.
Não em relação a evitar a morte, porque eu sempre soube que é impossível viver eternamente, embora na faculdade tentem fazer a gente acreditar que é possível ser eterno. Mas por que abandonavam o paciente e a família? Por que sedavam para deixá-lo incomunicável? Sempre me parecia que era preciso sedar o sofrimento e não o sofredor, mas acontecia o contrário.
Como ninguém suportava ouvir suas necessidades e responder suas perguntas dolorosas, a morte chegava no total abandono humano. Cercado de máquinas, uma pessoa morria muito mal, e só o que precisava era de pessoas e cuidados com seu sofrimento. Mas os médicos só sabiam oferecer máquinas, ausências e não raro, muitas mentiras. Por que não me ensinavam a conversar com os pacientes e as famílias? Por que não se importavam em tratar a dor? Por que negavam tanto a morte e a fragilidade da vida humana? Nada foi respondido até que eu chegasse na Geriatria e uma enfermeira me desse de presente um livro que me daria algumas respostas: Sobre a Morte e o Morrer da Elizabeth Kubbler Ross. Devorei o livro numa noite. Naquele dia seguinte eu pude sorrir, aquela dor engasgada no peito aliviou, sabe? Prometi a mim mesma:
Quando eu cuidar de uma pessoa morrendo, eu vou saber o que fazer.
Aí eu comecei a buscar tudo o que estava relacionado com a Medicina Paliativa. Era uma área ainda desconhecida da prática médica brasileira. Cuidar de pacientes em “fase terminal” era visto como fútil, uma vez que “nada” poderia ser feito para salvar aquela vida.
A sociedade tem muita dificuldade de encarar a morte. Inerente à condição de estar vivo, estar morto é apenas uma questão de tempo. Mas pouca gente sabe lidar com esse fato. Vejo a importância desse trabalho para os pacientes que precisam desses cuidados como fundamental. Não posso classificar como boa ou ruim a opção de ser encaminhado para cuidados paliativos, mas absolutamente necessária para a viabilidade de uma boa qualidade de vida na finitude humana. Uma vez que você fosse diagnosticado com uma doença terminal, a única coisa que poderia ter certeza é de que o sofrimento insuportável estaria a sua espera.
Ter alguém quase importe com seu sofrimento no fim da vida é uma dessas coisas que trazem muita paz e conforto para quem está morrendo e para seus familiares. Todo mundo precisa desse trabalho, pois todo mundo vai morrer um dia. No Brasil, nove em dez pessoas vão morrer de morte anunciada, ou seja, de doença degenerativa ou câncer.
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Numa edição do “The Economist” sobre índice de qualidade de morte pelo mundo em 2010, numa análise comparativa de 40 países, o Brasil ficou em 38º lugar. Como o terceiro pior país do mundo em qualidade de assistência a morte e eu penso que a responsabilidade maior para mudar isso é dos médicos. Poderíamos dizer que seja responsabilidade também da sociedade brasileira, ainda extremamente imatura frente a essa realidade. No país da alegria, do futebol, do carnaval e do “jeitinho” parece o povo acredita que a morte vai se distrair por aqui.
Geralmente, as pessoas que, ao longo da vida não tiveram muita chance de ponderar sobre o fim dela chegam atrasados na própria existência. Fica faltando dizer muita coisa, fazer muita coisa, viver muita coisa. Mas a ficha cai bem na hora em que não há mais tempo para quase nada. A grande dificuldade que a gente tem no Brasil é que não se fala sobre a doença para o paciente. Não se fala de morte nas rodas de conversa. Existe curso para tudo, existe preparo para tudo, até para o que pode não acontecer. Por que não somos preparados para morrer?
Todos serão absolutamente transparentes diante de uma pessoa perto da morte. É impressionante como as pessoas adquirem uma verdadeira “antena” captadora de verdade quando se encontram com a morte e o sofrimento da finitude… eu sempre digo que parecem oráculos… sabem tudo o que realmente importa nessa vida com uma lucidez incrível. As pessoas precisam saber que não há fracasso diante das doenças terminais… é preciso ter respeito pela grandeza do ser humano que enfrenta sua morte.
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O verdadeiro herói não é aquele que quer fugir na hora do encontro com sua morte, mas sim aquele que a reconhece como sua maior sabedoria. Hoje, mais de um milhão de brasileiros morrem a cada ano. E a grande maioria morre com grande sofrimento. Um dia seremos parte desta estatística, nossos amados serão parte desses números. E que histórias de últimos dias contarão a nosso respeito? Do que lembraremos dos últimos momentos de quem amamos tanto? O que fazemos com o tempo que temos hoje antes que a morte chegue?
Escolhi essa área da medicina por valorizar meu tempo e por isso me sinto capaz de valorizar o tempo do outro. Eu sei o meu melhor motivo de existir, de viver. Quem está morrendo não tem tempo pra desperdiçar com quem não sabe o valor que o tempo tem e eu me dedico muito ensinar e a respeitar isso.
Nossa cultura é frágil demais em consciência da finitude humana. Falta maturidade, integridade, realidade. O tempo acaba, mas a maioria das pessoas não percebe que quando olha o relógio repetidas vezes esperando o fim do dia, na verdade estão torcendo para que sua morte se aproxime mais rápido.
Quando passamos a vida esperando pelo fim do dia, pelo fim de semana, pelas férias, pelo fim do ano, pela aposentadoria, estamos torcendo para que o dia da nossa morte se aproxime mais rápido. Dizemos que depois do trabalho vamos viver, mas esquecemos que a opção “vida” não é um botão “on/off” que a gente liga e desliga conforme o clima ou o prazer de viver. Com ou sem prazer, estamos vivos 100% do tempo. Vida é coisa constante. Vida acontece todo dia e poucas vezes as pessoas parecem se dar conta disso.
A morte, a doença, o sofrimento vai bater na porta de todos nós. Meu pai morreu há quatro anos. Seus últimos dias foram vividos por nós num lugar maravilhoso, com os cuidados recebidos por uma equipe também maravilhosa e que, por uma carinho de Deus, tinha sido treinada por mim para receber um paciente de Cuidados Paliativos exclusivos. E o primeiro paciente que foi recebido lá foi meu pai. Vi tudo o que ensino e acredito sendo feito. E pude então “viver” o que ensino e acredito.
Quanto mais consciente da morte, mais o ser humano se torna humano mesmo. E só sendo humano de verdade dá para escolher como passar seu tempo por aqui: viver até que a morte chegue ou ir morrendo enquanto acha que está vivo.
(Autora: Dra. Ana Claudia Quintana Arantes)
(Fonte: humanavida)
*Texto publicado com autorização da autora.
Nessas horas tudo o que pode ser oferecido à alguem nessa situação é um pouco de humanidade, é o momento em que ela deve ter alguem de extrema confiança ao seu lado um guru ou mestre religioso para ajuda la.