Imagine que quando seu dia começa com aquela estrondosa escancarada de janela, alguém que passou a noite em claro sente seu baque nitidamente.
Imagine, então, que quando cai da sua mão um cinzeiro, um vaso, uma pilha de livros, é em cima da cabeça de um coitado que cai.
E enquanto dura aquela sua reforma interminável na cozinha, enquanto as manhãs são manhãs de marreta e talhadeira, enquanto a maçaneta da porta escapa da sua mão e a porta bate, existe sob os seus pés, ou ao seu lado, alguém que tudo escuta e tudo sofre como um santo a contragosto.
Pense um pouco, só um pouco, nessa intimidade gritante que vaza da sua casa para a casa alheia, isso que é hábito dos seus pequenos desleixos, das suas fúrias rotineiras, as marteladas, o batuque, a porrada na parede.
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Imagine que esse santo a contragosto recebe diariamente seus barulhos e os afoga um a um na fonte à míngua do silêncio.
Que se não fosse um santo, voluntariamente um surdo, esse que mora logo abaixo dos seus pés, ou ao seu lado, podia um dia responder à altura e no fim das contas tudo era um caso de polícia.
Imagine um pouco além dos limites de quatro paredes, que acima da sua cabeça ou bem diante da sua porta, também existe alguém que, se quisesse, faria da sua vida um inferno.
Assim que, nesses tempos de seca, nesses tempos de volume morto de tantas insondáveis reservas, em nome de um pouco de paz interna, já que não se pode silenciar nas ruas a barafunda de alarmes, sirenes, britadeiras, o caminhão das melancias e dos abacaxis em promoção, não custa muito experimentar algum cuidado, um pouco mais de amor nas mãos, na voz, nos pés, que essa delicadeza há de repercutir na saúde mental de quem você mal conhece, mas que está aí, seu vizinho, seu consorte invisível de rotina sempre tão perto, acima ou abaixo ou ao lado de você, ao alcance sonoro dos seus menores gestos.
(Autora: Mariana Ianelli – escritora, mestre em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo)
(Fonte: rubem.wordpress.com )