Nos últimos dias tenho me perdido nas páginas do excelente livro do Dr. Atul Gawande, chamado “Mortais”. No livro ele fala, de forma ao mesmo tempo objetiva e angustiante, sobre a montanha-russa de emoções a que médicos se submetem ao lidarem com pacientes graves e sem perspectiva de cura.
Ele fala de como somos incapazes de iniciar conversas que realmente importem para essas pessoas, e de como podemos privá-las de escolhas mais sensatas e compatíveis com sua realidade, escolhas que poderiam proporcionar a elas um final mais digno e feliz.
O livro dele fez com que eu mais uma vez repensasse minhas próprias atitudes, fragilidades e incapacidades.
Meus pensamentos vagaram por tantas conversas inúteis que tive com pacientes que partiram pouco tempo depois, conversas que pouco ajudaram essas pessoas a encontrarem a melhor forma de viverem seus últimos dias.
Lembrei também das vezes em que pude ter uma conversa realmente importante, que foi definitiva nas decisões dos pacientes e de seus familiares, e o quanto suas vidas mudaram depois disso.
Pensei no quanto as palavras certas, no momento certo, podem mudar uma história.
Mas a angústia continua a nos consumir. Como é que sabemos qual o momento de falar sobre perspectivas, chances, desejos, decisões? Como adivinhamos se aquela pessoa sentada à nossa frente está em condições de compreender o que a espera? Como é que nós médicos podemos nos posicionar diante de situações tão individuais quanto os próprios seres humanos?
Não há guidelines para algo assim. E o maior problema continua sendo nossa própria postura, enquanto médicos: a de que somos guardiões da vida alheia, a qual é responsabilidade nossa. Não somos.
A paciente de um colega oncologista uma vez disse a ele, enquanto conversavam sobre suas perspectivas:
“O importante é considerar os riscos da travessia”.Ela via sua doença e sua vida como um rio que precisa ser atravessado. Ao ouvir a frase dela, eu me transportei para a beira do rio e, aos poucos, fui compreendendo o que ela quis dizer.
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Ao receber um novo paciente, com uma doença grave, penso que estamos ambos sentados à margem do rio. O paciente precisa atravessar para a margem oposta. Ele tem que fazer isso antes que anoiteça.
Eu não conheço o paciente, mas conheço bem o rio. Sei onde ele é mais fundo, sei em que época ele é cheio de piranhas, sei quando tem corredeira. Meu paciente não. Só que é ele quem precisa atravessar, e tem que atravessar agora. Não vai dar para esperar a melhor época do ano, quando o rio está mais favorável à travessia. E ele conta com o que eu sei sobre aquelas águas para tentar chegar em segurança do outro lado.
Às vezes, o rio é estreitinho, e eu posso dizer para o paciente: “Pode pular, garanto que você chega do outro lado sem nem molhar seus pés!” E ele vai, e fica tudo bem.
Às vezes, o rio é mais largo, não dá pra pular, mas eu sei de um trecho onde ele é mais raso, e posso dizer para o meu paciente: “Olha, você vai se molhar, mas vai chegar do outro lado em segurança!” E ele vai. Chega encharcado do outro lado, mas sorri agradecido e segue seu caminho.
Só que às vezes, muitas vezes, o rio é bem largo e bem fundo. É tão largo e tão profundo que vou ter que ter muito mais critério ao avaliar as chances dele chegar ao outro lado.
Eu vou ter que perguntar, por exemplo, se meu paciente sabe nadar, se o preparo físico dele está em dia, se ele tem medo de água fria. Dependendo do que ele me responder, eu vou poder orientá-lo dos riscos da travessia, e ele vai poder decidir se quer corrê-los.
Pode ser que meu paciente não saiba nadar. Pode ser que ele esteja numa condição física tão ruim que, apenas de olhá-lo, sei que não vai dar para chegar do outro lado. Nessa hora é que eu vou ter que ajudá-lo a tomar as decisões certas, para que ele não morra se debatendo desesperado no meio do rio gelado. Se ele decidir correr o risco, vou pegar minha canoa e atravessar do seu lado, orientar cada braçada.
Estarei ao seu lado se ele não conseguir completar a travessia, e vou garantir que sua despedida seja digna e tranquila. E, se ele quiser permanecer na margem, não tem problema. Vou ficar do lado dele, fazendo companhia, até a noite chegar.
Definitivamente, não temos o poder que imaginamos sobre a vida das pessoas. Nem sequer somos capazes de salvar vidas: na melhor das hipóteses, conseguimos adiar o momento da morte, ou trocar uma forma de morrer por outra, que ocorrerá um pouco mais adiante.
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Salvar, mesmo, não dá.
E assim, olhando para o rio, fica fácil entender que estamos muito mais para “equipe de apoio” do que para guardiões das vidas dos nossos pacientes.
Então, que sejamos a melhor equipe de apoio com que eles possam contar. Sempre.
(Autora: Ana Lucia Coradazzi – médica oncologista clínica)
(Fonte: nofinaldocorredor.com )
Me emocionei com a leitura. É admirável o olhar da Drª. Ana Lucia Coradazzi aos seus pacientes. Parabéns!