Existem muitas pessoas com as quais podemos aprender alguma coisa, adquirir informações, aumentar nossa cultura. Há bem poucas, porém, cujo encontro nos engrandece de modo especial, nos faz sentir um secreto orgulho de partilharmos com elas a mesma condição humana, nos obriga a sermos mais exigentes em relação a nós mesmos (como se nos disséssemos: “E você, o que está fazendo?”). Nise da Silveira (Maceió, 15 de fevereiro de 1905 — Rio de Janeiro, 30 de outubro de 1999) foi uma dessas pessoas raras. Grandeza como ser humano, enorme capacidade de doação, fina sensibilidade, vasta cultura, inesgotável força de trabalho: foram muitas as qualidades que fizeram dela essa pessoa especial.

Muito antes de Franco Basaglia ter iniciado, em Milão, seu movimento de reforma das instituições psiquiátricas, muito antes de R.D.Laing ter feito sua crítica radical da psiquiatria, Nise, na prática, já revolucionava a concepção de atendimento psiquiátrico. E isso em um dos lugares mais inóspitos: uma grande instituição pública (o Centro Psiquiátrico Pedro II), no modorrento e preconceituoso Brasil do final dos anos 1940. Pois foi em 1946 que Nise, confiando unicamente em sua própria intuição, criou, no hospital, uma seção de terapia ocupacional, que englobava 17 tipos de atividades. Logo as modalidades mais diretamente expressivas (pintura e modelagem) passaram a influenciar de maneira tão marcante a condição daqueles internos, diagnosticados como psicóticos, que Nise percebeu a necessidade de criar um museu para acolher a fantástica produção e permitir ao terapeuta acompanhar, por meio dela, a evolução dos casos clínicos. Assim nasceu, em 1952, o Museu de Imagens do Inconsciente.

Mas Nise não parou nisso. Queria compreender, em profundidade, o significado daquelas imagens poderosas, pois percebia que essa era a porta que dava acesso ao fechado mundo interior dos psicóticos. Neurologista por formação, não encontrou na psiquiatria tradicional a chave que procurava. Esta lhe foi propiciada pela descoberta da psicologia junguiana e pelo encontro pessoal com o própria Jung. Percebemos o quanto ela esquadrinhou aquele misterioso mundo interior lendo seu livro Imagens do Inconsciente,onde a extraordinária profundidade das observações se combina com a elegância e a agilidade da linguagem.

Outra frente de trabalho foi a Casa das Palmeiras, fundada em 1956, para acolher psicóticos em regime de externato. Nise queria arrancar aquelas pessoas do círculo vicioso da “alta e reinternação” (as recaídas chegam a 80% nas instituições psiquiátricas convencionais). Quando foi aposentada da direção do museu, em 1975, Nise retornou no dia seguinte, com um caderninho debaixo do braço, inscrevendo-se como estagiária. São essas coisas que fizeram dela uma pessoa tão rara.

Em março de 1991, quando estava com 87 anos, Nise concedeu-me esta entrevista, em seu apartamento no Rio de Janeiro. Seu ritmo de atividade na época ainda era intenso. Ela acabara de redigir o segundo volume de Imagens do Inconsciente. Pouco antes, concluíra a redação de Cartas a Spinoza. Sempre às voltas com grupos de trabalho, documentários e exposições, reunia, todas as quartas-feiras, o Grupo de Estudos Carl Gustav Jung, dedicado à investigação em profundidade da obra do grande psicanalista suíço. Uma vez por mês, um grande número de pessoas se encontrava no Circo Voador, no Rio, para conversar com Nise, no que ficou conhecido como “O chá da doutora”. E, vez ou outra, ela ocupava nas páginas da imprensa carioca, liderando movimentos como a oposição à cruel “farra do boi catarinense”. Para Nise, esta era uma tradição abominável: ela não se limitava a interpretá-la; agia para suprimi-la: o mesmo amor e compaixão que dedicara durante tantos anos aos psicóticos, estendia também aos animais. Foi em seu escritório, forrado de livros e povoado de gatos, que ela conversou durante um bom tempo comigo.

JTA – Jung iniciou suas Memórias com a frase “Minha vida é a história de um inconsciente que se realizou”. Nesta altura da vida, a senhora considera que seus desígnios mais profundos também foram cumpridos?

Nise – Não completamente. Jung foi uma pessoa muito especial e alcançou a plena realização do inconsciente. Eu não consegui. Os atropelos do meu ego e de outros egos perturbaram essa realização, que, para mim, é a meta suprema do ser humano. Mas continuo me esforçando nesse sentido. Não tem importância a idade, como não teve importância a aposentadoria. Fui aposentada pela “compulsória” e, no dia seguinte, já estava de volta ao trabalho. Depois das Memórias, que escreveu aos 83 anos, Jung ainda produziu muita coisa, até morrer, aos 87.

JTA – Como a senhora entende essa realização?

Nise – Eu a entendo no sentido de “individuação”. O indivíduo somente se completa quando consegue integrar o inconsciente e o mundo exterior. Nesse processo, as forças do inconsciente são as principais. Não estou dizendo que o exterior deva ser negligenciado. Mas o que notamos, hoje, é que a grande maioria das pessoas só se preocupa com o exterior. Eu me dirigi, desde muito cedo, a tentar “abrir a porta que liga o real ao mundo interno”, para repetirmos a frase de Artaud. Essa é a paixão de meu trabalho, o que o caracteriza. Mas não é tão fácil entrar no mundo que existe por trás dessa “porta”. Foi difícil principalmente com os psicóticos, que não se exprimem através da linguagem proposicional. Eles se exprimem muito mais através de imagens. Então, meu caminho, foi reunir imagens configuradas pelos indivíduos que estavam do outro lado da “porta”. Reunir as imagens em séries e estudá-las. Meu trabalho foi quase todo feito seguindo esse caminho.

JTA – Esse rastreamento de séries também foi feito por Jung no estudo dos sonhos, não é mesmo?

Nise – Sim. A análise de um único sonho não vale nada. É preciso seguir séries de sonhos. Como é preciso seguir séries de imagens. No psicótico, torna-se ainda mais difícil encontrar o fio condutor entre imagens que são praticamente autorretratos do processo interior. Esse fio muitas vezes desaparece, para aparecer dez imagens depois. Essas viagens interiores me apaixonam. Elas são realmente fascinantes. Levam muito longe. Às vezes, até às camadas mais profundas do inconsciente. Às vezes, chegam até ao Paleolítico. É claro que não quero ficar com meu paciente no Paleolítico: meu objetivo é trazê-lo de volta. Agora, para isso, é preciso conhecer, antes de tudo, os parâmetros elementares de tempo e espaço sob os quais o indivíduo está vivendo. Esse é um pressuposto para se poder dialogar. E o fio condutor das imagens nos ajuda a encontrar o caminho de volta. As imagens são como as bolinhas de pão, da história de João e Maria, que ajudam a encontrar o caminho na floresta. Mas veja: essa procura interna não está absolutamente em contradição com a melhoria do status do indivíduo que vivia nessas “masmorras”.

JTA – Aliás, a conciliação desses dois aspectos é uma das características importantes do seu trabalho.

Nise – O indivíduo voltará muito mais facilmente, se encontrar as condições bem assentadas. A Casa das Palmeiras, com suas portas e janelas abertas, tem esse objetivo. O indivíduo pode sair. Médicos e enfermeiras não são uniformizados. Isso é importante porque essa personado técnico o separa muito do indivíduo. Este fica pensando: “eu sou o doente; ali está o médico”. Estou de pleno acordo com as ideias de Basaglia de modificação das instituições psiquiátricas. Essas instituições ainda são, como eu disse, verdadeiras “masmorras”. Quando fundei com amigos a Casa das Palmeiras, em 1956, nosso objetivo era que os egressos, pessoas que viveram experiências internas dramáticas, não entrassem de chofre neste mundo tumultuado. Esse objetivo persiste até hoje. Então, para mim, não é novidade oferecer aos indivíduos condições de vida mais razoáveis. A Casa das Palmeiras foi fundada em 1956, mas pensada muitos anos antes. Não queríamos que seu nome sugerisse a ideia de doença, daí o nome Casa das Palmeiras, dado por uma amiga minha, artista plástica.

JTA – Por falar nisso, reparei que a senhora nunca usa as palavras “doente” ou “paciente”. A senhora sempre os chama de “indivíduos”.

Nise – A palavra “paciente”, em especial, é horrível. Ela sugere uma atitude totalmente passiva da parte da pessoa. Também não acho que se deva caracterizar suas condições como “doença”. Eu gosto muito da expressão de Artaud, que se refere a essas condições como “estados perigosos do ser”.

JTA – Em que medida os conteúdos do seu próprio inconsciente influenciaram seu trabalho?

Nise – Foram uma fonte permanente de inspiração. Eu não poderia valorizar algo que me fosse estranho – embora não tenha conseguido a intimidade com os conteúdos do inconsciente que Jung conseguiu. O importante foi harmonizar o interior e o exterior. Se os conteúdos do inconsciente tomam conta do ego você está perdido. É o que geralmente se chama de “surto psicótico”: uma ressaca de conteúdos do inconsciente que avassala o ego. Quando isso acontece, o que faz a psiquiatria tradicional? Dá neurolépticos, o que equivale a colocar uma tampa sobre esses conteúdos.

JTA – Em sua opinião, os neurolépticos nunca devem ser usados?

Nise – Devem ser usados inteligentemente. No momento em que as ondas mais altas da ressaca se levantam e perturbam de forma insuportável a psique. Nós observamos que, depois do uso prolongado de neurolépticos, a produção de imagens se torna muito mais pobre. A utilização de neurolépticos acaba sendo uma solução cômoda apenas para médicos e enfermeiras. A pessoa que faz contato com o inconsciente – mas não está sendo aturdida – dialoga com seus conteúdos. Os desenhos livres são verdadeiros autorretratos desse processo. Naturalmente, acontecem muito mais coisas do que os desenhos podem expressar. A psique é um mar imenso, um enorme pedaço da natureza. Meu livro Imagens do Inconsciente estuda esse percurso. Você acompanha, por meio da pintura, a perturbação do espaço.

JTA – A arte contemporânea também apresenta essa perturbação do espaço. Aliás é uma de suas características mais marcantes. É possível diferenciar a pintura de um artista contemporâneo da pintura de um psicótico talentoso, como muitos com os quais a senhora trabalhou?

Nise – De fato, a arte moderna revolucionou a concepção de espaço. É o caso do Escher, por exemplo. Ele exprime toda essa subversão do espaço. Mas tem a passagem de volta no bolso. Já o indivíduo que vive em um estado perigoso do ser não encontra essa passagem. Ele busca essa volta ao espaço cotidiano, mas não consegue. O afeto é a grande ponte que traz o indivíduo do tumulto interior para o mundo real. Fernando Diniz encontrou esse afeto na pessoa de uma monitora. Agora, esse encontro é geralmente trágico para o indivíduo, porque a pessoa que ele ama quer ajudá-lo, mas não o ama. Muitas vezes até por medo de si própria. Então, é terrível a condição de um indivíduo que sai da situação psicótica e quer ter uma vida normal, mas não é correspondido.

JTA – A discriminação é muito grande não é?

Nise – Até nas famílias ela acontece. Um indivíduo me contou que, quando ia beber água, a mãe corria para servi-lo. Ele me disse que, na verdade, ela temia que ele quebrasse a moringa na cabeça dela.

JTA – A senhora comparou a psique a um mar imenso. O que seria o ego nessa paisagem?

Nise – O ego é uma pequena ilha. O perigo é o mar, na ressaca brava, submergir a ilha. Aí ocorre a tragédia. Tanto que, na Casa das Palmeiras, trabalhamos também no sentido de fortalecer o ego. Para isso, criamos grupos de discussão de problemas atuais, temos um jornal feito pelas próprias pessoas.

JTA – Laing empregou uma metáfora muito parecida com essa do mar e da ilha. Ele disse que o místico e o psicótico se encontram no mesmo oceano, mas o místico nada, enquanto o psicótico se afoga. A força do ego seria, então, o grande diferencial? Estou pensando em um caso, descrito em seu livro Imagens do Inconsciente, que me impressionou muito: o do Carlos, que teve a visão cósmica do “Planetário de Deus”, e enlouqueceu. Depois, a senhora soube que essa mesma visão havia despertado os dons do grande místico Jacob Boheme

Nise – Não foi exatamente a mesma visão. Foi uma visão equivalente. Carlos estava fazendo a barba e, de repente, teve uma visão no espelho. Imediatamente começou a gritar: “Venham ver o planetário de Deus”. E o trancafiaram em um hospício. Boheme, que também era sapateiro como Carlos, teve a visão geral do mundo quando um raio de sol bateu no prato de estanho em que comia. No caso de Carlos, houve uma grande fragilidade do ego, que não lhe permitiu suportar a intensidade da experiência. A mitologia está cheia de casos semelhantes. Já em Jacob Boheme, o ego teve força suficiente para aguentar a experiência de Deus, que, segundo os místicos, tem a energia de mil sóis.

JTA – O que aconteceu depois com Carlos?

Nise – Ele morreu no hospital com mais ou menos sessenta anos. Durante trinta anos de pintura, realizou 21.500 obras. Fazia de cinco a sete trabalhos por dia.

JTA – Voltando à “experiência de Deus”. Ela é interpretada como patológica pela escola freudiana. Recentemente, no entanto, Stanislav Grof inverteu essa formulação: para ele, ao contrário, é a visão materialista ateia que representa a privação de uma dimensão essencial do ser humano. Como a senhora se posiciona em relação a este tema?

Nise – Jung considerava a religião uma função da psique. Como tal, tem que ser vivida. Se você nega qualquer função psíquica, você se mutila. Não se trata desta ou daquela religião, mas da religião vista de maneira ampla. Quando a religião é negada, muitas vezes a própria ideologia se torna religião. Justamente porque, sendo uma função psíquica, esta tende a se expressar. Freud foi de uma importância extraordinário, mas, filosoficamente, era cartesiano. Jung estava muito além. Isso é o que leva autores como Capra a considerá-lo um ponto de mutação da concepção cartesiana para a concepção contemporânea. Aliás, o encontro de Jung com a física quântica foi importantíssimo.

JTA – E seu encontro com Jung, como foi?

Nise – Meu encontro com Jung foi inicialmente empírico. Eu queria entender as mensagens do inconsciente através das imagens. Os instrumentos que eu tinha à mão eram os da psiquiatria tradicional. E eles não davam conta do que eu estava buscando. Começaram a aparecer dúvidas e mais dúvidas. Quando descobri a teoria junguiana, ela foi como uma chave para mim. Em 1957, estive em Zurique e falei a Jung da minha insatisfação com o trabalho psiquiátrico. Para minha surpresa, ele me perguntou: “Você estuda mitologia”? Respondi que só conhecia a mitologia por meio da literatura. Aí, ele disse: “Se você não estudar mitologia não entenderá nunca nem as imagens nem os delírios de seus doentes”. Quando voltei ao Brasil, deparei-me com uma das minhas internas, Adelina, que queria virar flor. Era a reprodução do mito de Dafne.

JTA – Jung, sem dúvida, foi uma influência decisiva em sua trajetória. Quais foram as outras grandes influências?

Nise – Foram muitas. A começar de casa, com meu pai e minha mãe. Depois minha mestra do primário, uma freira francesa, Cecília. Na faculdade de medicina, sinceramente, nenhum professor me impressionou. Encontrei, sim, mestres na filosofia: tenho um encanto especial por Spinoza…

JTA – Eu observei, aliás, que em sua biblioteca há uma prateleira inteira dedicada a Spinoza.

Nise – É verdade. Escrevi, recentemente, um pouco brincando, o que chamei de Cartas a Spinoza. Dirijo-me a ele como se fosse um amigo… Continuando com as influências, há, é claro, Freud e Jung. Dos mais modernos, devo citar Laing, que considero o maior psiquiatra. Ele viu o social, mas também o processo interno. Artaud também me deu muito de minha concepção psiquiátrica.

JTA – Por falar nas Cartas a Spinoza, sabemos que, além desse texto, a senhora estava mergulhada em um trabalho de grande fôlego, a redação do segundo volume de Imagens do Inconsciente. E ainda arranja tempo e disposição para se envolver de corpo e alma nessa luta contra a “farra do boi catarinense”, tendo inclusive escrito um pequeno livro a respeito

Nise – Estou engajadíssima nessa movimento contra a “farra do boi”. Sou muito ligada aos animais. Inclusive, desde 1955, admitimos a presença de animais no Instituto Psiquiátrico. Foi uma coisa muito criticada e incompreendida na época. Mas veja, no caso de Carlos, por exemplo, o cão era a ponte que o ligava à realidade exterior. A linguagem de Carlos era agramatical, cheia de neologismos, de difícil compreensão; sua comunicação com o cachorro, porém, era total. Uma vez, quando o cachorro se feriu, Carlos afirmou, num português muito claro e correto, que precisava de dinheiro para comprar remédio para o cachorro. Sem exagero, pode-se dizer que os terapeutas de Carlos foram os cães Sultão e Sertanejo; médicos e monitores desempenharam papel auxiliar. Tenho quatro gatos comigo. Já tive muito mais. Eles são silenciosos e me auxiliam no trabalho. Os gatos são os meus mestres.

(Autor:José Tadeu Arantes (Kabir))
(Fonte: josetadeuarantes.wordpress.com)

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